Dom João Justino de Medeiros Silva
Arcebispo de Montes Claros (MG)
Ouve-se, às vezes, em algumas comunidades, ora nas missas, ora em encontros de oração ou de pastorais, uma canção cujo refrão diz “O meu lugar é o céu, é lá que eu quero morar”. Sobretudo adolescentes e jovens gostam de cantar com vibração e, se o contexto favorece, pulam e dançam. O texto da música tem duas estrofes: “Eu sei não vale a pena, tanta grana, poder, fama, pois isso tudo aqui vou deixar. E sei que lá no céu só chega aquele que na terra seus bens soube compartilhar. Por isso, todo dia, dia a dia, a cada hora, eu sei com Deus eu posso contar. E a cada passo certo que eu der aqui na terra, mais perto dele eu vou ficar”. Essas poucas palavras comunicam com simplicidade o itinerário para uma vida em Deus: nossa vida, destinada à plenitude da comunhão com Deus, passa pelo exercício da fraternidade. Daí a afirmação: o caminho para o céu passa pelo coração dos irmãos.
Esse tema atravessa por séculos a doutrina cristã. Ele retorna com regularidade. O céu é um dom, é pura graça? O céu precisa ser conquistado? É resultado do obrar humano? É prêmio divino para os justos? Basta ter fé? A doutrina cristã preservou a prioridade da graça divina em relação à responsabilidade humana. O desafio é conciliar a fé inabalável no amor de Deus e o empenho cotidiano de servi-lo no amor aos irmãos, especialmente os mais pobres, pois a misericórdia é a chave do céu (Evangelii gaudium, 197).
No entanto, há uma tentação recorrente, a de considerar que a fé tem a ver somente com as expressões do culto religioso. Alguns buscam uma espécie de purismo cultual e correm o risco de se distanciarem da realidade, negando a importância dos desdobramentos da vida cristã no âmbito da cidadania e da participação política. O cuidado com os pobres, que nunca poderá ser desconsiderado pelos discípulos de Jesus, pede o exercício de uma caridade que “não se reduza à esmola, mas implique a atenção à dimensão social e política do problema da pobreza” (Compêndio da Doutrina Social da Igreja, 184).
O Papa Francisco indica a profunda relação entre os atos de culto e os atos de misericórdia. Ele ensina: “Não posso deixar de lembrar a questão que se colocava São Tomás de Aquino ao interrogar-se quais são as nossas ações maiores, quais são as obras exteriores que manifestam melhor o nosso amor a Deus. Responde sem hesitar que, mais do que os atos de culto, são as obras de misericórdia para com o próximo: ‘não praticamos o culto a Deus com sacrifícios e com ofertas exteriores para proveito d’Ele, mas para benefício nosso e do próximo: de fato Ele não precisa dos nossos sacrifícios, mas quer que Lhos ofereçamos para nossa devoção e para utilidade do próximo. Por isso a misericórdia, pela qual socorremos as carências alheias, ao favorecer mais diretamente a utilidade do próximo, é o sacrifício que mais Lhe agrada’” (Gaudete et exsultate, 106).
Cantemos com alegria: “O meu lugar é o céu, é lá que eu quero morar”. Esse desejo do céu, plantado em nós por Deus quando nos chamou a viver, nos mobilize a favor da caridade e de seus desdobramentos sociais e políticos. Já disseram que a Cruz tem duas hastes para nos lembrar do céu e dos irmãos. Mas vale observar: a haste vertical que aponta para o céu, e está plantada na terra, necessariamente se entrecruza com a haste horizontal, o serviço a Deus no amor aos irmãos.