+ João Bosco Óliver de Faria
Arcebispo Emérito de Diamantina
Ensina-nos o Catecismo Católico:
A Eucaristia é a fonte e o ápice de toda a vida cristã1. Os demais sacramentos, assim como todos os ministérios eclesiásticos, se ligam à Sagrada Eucaristia e a ela se ordenam, pois a Santíssima Eucaristia contém todo o bem espiritual da Igreja, a saber, o próprio Cristo, nossa Páscoa[2].
O mandamento de Jesus de repetir seus gestos e suas palavras “até que Ele volte” não pede somente que se recorde de Jesus e do que Ele fez. Visa à celebração litúrgica, pelos apóstolos e por seus sucessores, do memorial de Cristo, de sua vida, da sua Morte, da sua Ressurreição e da sua intercessão junto ao Pai[3].
Era sobretudo “no primeiro dia da semana”, isto é, no domingo, o dia da Ressurreição de Jesus, que os cristãos se reuniam “para partir o pão” (At 20,7). Desde aqueles tempos até os nossos dias a celebração da Eucaristia perpetuou-se, de sorte que a encontramos em toda parte da Igreja, com a mesma estrutura fundamental. Ela continua sendo o centro de toda a vida da Igreja[4].
A liturgia da Eucaristia desenrola-se segundo uma estrutura fundamental que se conservou ao longo dos séculos até aos nossos dias. Desenrola-se em dois grandes momentos, que formam uma unidade básica:
– a convocação, a “Liturgia da Palavra”, com as leituras, a homilia e a oração universal;
– a “Liturgia Eucarística”, com a apresentação do pão e do vinho, a ação de graças consecratória e a comunhão.
A Liturgia da Palavra e a Liturgia Eucarística constituem juntas “um só e mesmo ato de culto”[5]; com efeito, a mesa preparada para nós na Eucaristia é, ao mesmo tempo,a Palavra de Deus e a do Corpo do Senhor[6].
A Eucaristia é, pois, a fonte e o ápice de toda a vida cristã. Assim, o católico que deseja fortalecer sua vida cristã tem na Eucaristia a sua força principal. Até um tempo não muito distante de nós, vivia-se, no dia a dia, um clima de cristandade. Era grande a frequência e a participação das pessoas nas missas dominicais e os outros sacramentos da Igreja eram procurados com maior interesse.
A secularização da sociedade e as mudanças frequentes dos costumes, com novidades a surgir e a desaparecer em pouco tempo, desviaram o foco de atenção de alguns sobre o que é importante para bem viver “o tempo” da própria vida. O consumismo, a busca da vida festiva, o querer estar por dentro das ondas que passam, trouxe uma insegurança e uma insatisfação permanente a algumas pessoas. Essas têm um nível de aspiração social bem acima da realidade possível em que se encontram. Parece haver algo de frenético no ar, uma obsessão permanente por um melhor status de vida.
Parece que o comodismo chegou para ficar. Na busca pelo rápido e pelo fácil, respira-se, às vezes, uma alergia ao difícil, ao esforço pessoal e a tudo o que custa. Os professores enfrentam, nas escolas, o desafio de avaliar alguns alunos que circulam entre a colagem na internet e a pesquisa séria e objetiva.
2007 foi e será um marco na história da humanidade com o surgimento do smartphone influenciando no relacionamento interpessoal. Consequentemente, os contatos com amigos podem ter se tornado mais frequentes, mas, ao mesmo tempo, mais superficiais. Encontramo-nos nos e falamos mais vezes, mas de modo leve e superficial. Desapareceram as visitas. Restaram aquelas limitadas ao espaço do tempo das duas horas de um velório, onde reencontramos alguns amigos – em velório não se conversa; marca-se presença – nausente!
A comunicação instantânea desconhece distâncias. O mundo tornou-se pequeno. O homem avança no espaço sideral! O telescópio Hubble deu lugar a James Webb! Já escrevi que estamos mais perto de amigos distantes e mais longe dos amigos, antes tão próximos! O relacionamento virtual tornou-se, quase, uma obsessão ao nascer do dia. Por mais frequente que seja, esse relacionamento não deixa de ser virtual, ou seja, não real! Pior ainda, quando em lista de contatos!
O virtual atinge mais e melhor a inteligência que o coração, da mesma maneira que o real está bem mais ligado ao coração e menos ligado ao intelecto. O relacionamento humano, enquanto humano, usa a linguagem da inteligência e a do coração. Tornar absoluta a linguagem do coração pode levar à paixão desordenada e o reducionismo à inteligência pode robotizar o humano com o risco de perder seu específico, a humanidade.
Um amor virtual, por ser virtual, não é real e, não sendo real, não é verdadeiro. Quem se abandona ao virtual caminha para a solidão afetiva, e por consequência, para uma possível depressão. Já vi uma pessoa, assentada ao seu computador, reclamar da solidão. Computador não tem coração: placa mãe não tem sentimentos! Surge, nos sentimentos das pessoas, uma alergia ao definitivo, uma alergia a um compromisso para sempre.
Torna-se difícil a partilha calorosa nas redes sociais. Uma partilha calma e serena de grandes alegrias pessoais ou de dificuldades, de preocupações e de angústias que podem surgir no trabalho, na família ou na sociedade exige uma atenção e um tempo apropriado. Acontecimentos de grande importância na vida de uma pessoa correm o risco de serem afogados no relacionamento virtual: não faltam cumprimentos, mas falta a verdadeira celebração do júbilo, da alegria da conquista; pode também faltar a celebração do sofrimento na perda temporária ou definitiva de algo ou de alguém. A amizade não pode ser vítima do genérico. Não sem razão, referindo-se a um comportamento social falho de alguém, disse, recentemente, um diretor de programa (F.) na TV: – Isso é pior que dar pêsames por WhatsApp!
Uma das soluções importantes que podem ser tomadas é a de selecionar amizades fortes e sinceras, poucas, mas verdadeiras a serem cultivadas no mundo real. Isso significa ter com quem contar nas dificuldades da vida e, ao mesmo tempo, não ser omisso em partilhar com os nossos bons e verdadeiros amigos suas vivências de alegria, de apreensão, de tristeza ou de dor.
Uma camada da população tem, nos clubes de lazer ou de serviços, a possibilidade do encontro com “amigos” que não são desejados dentro da própria casa. Tal encontro pode significar a fuga de um comportamento formal para quem não deseja receber ou fazer visitas, ou para garantir a informalidade do próprio lar. O relacionamento humano foi degredado à formalidade do corriqueiro: “tudo bem?” Recordo-me que, uma vez, alguém passou por mim com o seu “tudo bem?” Como havia espaço em nossa amizade, pude, maldosamente, responder: “Não”! A pessoa tinha pressa e ficou sem saber o que dizer… e eu a rir! Não é importante ter muitos amigos. Importante é ter bons amigos!
Essa dificuldade, no relacionamento real, pode invadir a dimensão religiosa da vida pessoal. O individualismo religioso é a morte da virtude da religião: virtude que nos liga e religa a Deus e a nossos irmãos. Houve, no entanto, na história da Igreja, os eremitas e anacoretas que buscaram, na solidão, o espaço e o tempo para a oração contemplativa. Isso, porém, aconteceu numa equívoca percepção do valor da oração em comunidade.
Ensinou-nos Jesus: Vós, portanto, orai assim: Pai nosso… O pão nosso… perdoamos as nossas dívidas, assim como nós perdoamos aos nossos devedores. E não nos deixeis cair em tentação, mas livrai-nos do mal (Mt 6, 9 – 13). No relacionamento com Deus, a criatura deve se colocar em clima de comunhão com os irmãos, e não de solidão, de individualismo. A pessoa, em oração, deve vivenciar a dimensão comunitária. Os primeiros cristãos reuniam-se no primeiro dia da semana para rezar, para celebrar a Eucaristia.
Em Roma, em tempos de perseguição, os cristãos reuniam-se nas catacumbas não apenas para sepultar seus mortos, mas também para rezar. Com a liberdade dada por Constantino em 313, os cristãos organizaram seus espaços físicos onde se reuniram para rezar.
O individualismo da sociedade não pode atingir a dimensão religiosa da pessoa. É bom e importante ter seu tempo de oração pessoal, mas é muito importante participar da comunidade em oração.
Com a pandemia e com as recomendações para se evitarem aglomerações, reduziu-se o modo de participação nas Celebrações Eucarísticas e na Palavra de Deus. A prudência é a rainha das virtudes. Ninguém, no entanto, pegou Covid nos metrôs, nos ônibus urbanos sempre cheios, nos shoppings ou nas filas das Casas Lotéricas (!). Só se contamina a doença nos templos, nas igrejas (!). São discriminações que cheiram o histerismo. Qual vagão de metrô ou de ônibus urbano terá circulado com lugares vazios e em que cidade?
Nasceu o risco do comodismo religioso: em nome da pandemia, muitos deixaram de ir às igrejas para rezar. Mas a final do campeonato brasileiro de futebol e outras finais do mesmo esporte, em 2021, tiveram suas arquibancadas superlotadas. As aglomerações, tão comuns nos esportes, não transmitem a covid 19 (!); só as reuniões, com assentos apropriados, nas igrejas ou nas capelas, em número suficiente às necessidades dos fiéis, podem ser foco de transmissão do vírus!
O problema verdadeiro nasce quando as pessoas, orientadas pelo fique em casa, continuam saindo para o trabalho, para o supermercado, para o shopping center, para o show e para a escola, mas deixaram de participar das celebrações religiosas. Higiene pública ou comodismo religioso?
Penso que o problema não estaria nas orientações dos governantes, mas no comodismo religioso: pessoas que, tendo experimentado – no auge da pandemia – rezar com assistência virtual a uma autêntica celebração, preferem agora, passado o perigo maior, evitar a participação pessoal nas igrejas das comunidades de que fazem parte, não por medidas de precaução, mas por mero comodismo, como o evitar ter que se aprontar para sair. Nos templos, a pessoa reza em comunidade, com a comunidade e pela comunidade, sente e vive os problemas dos irmãos. A pessoa sai do seu problema pessoal, da sua visão míope da vida e da realidade em que se encontra, para ir ao encontro dos seus irmãos que choram ou que se alegram no seu viver.
O individualismo religioso é uma das portas da solidão, da depressão e da doença; ele é o caminho para a ausência da prática religiosa, fato que vai contra os costumes da história da humanidade nos seus diferentes povos e tempos. A história narra, em todos os povos e em todas as épocas, a presença dos sacerdotes a presidir o culto à divindade ou às divindades, com ampla participação do povo.
Sobretudo para nós católicos, assim como não se participa virtualmente de uma refeição acontecida à distância, não se pode participar, habitualmente, mas de modo virtual, de uma Santa Missa cuja dimensão central está na reflexão, em comunidade, da Palavra de Deus, e na participação da Ceia Eucarística, recebendo o Corpo e o Sangue de Jesus como verdadeiro alimento espiritual. Todas as orações da Santa Missa são dirigidas a Deus Pai, por Jesus Cristo, Nosso Senhor. Na Missa, reza-se com Cristo, que intercede ao Pai, por nós. Acompanhar as Santas Missas, de modo virtual, foi uma solução de emergência no auge da pandemia, solução emergencial que não pode se tornar o normal ou o comum para a vida espiritual do bom católico. A Santa Missa é uma celebração festiva da Ressurreição de Jesus Cristo. Não se faz uma festa sozinho.
Penso que o problema é mais complexo: trata-se da recuperação da celebração do Domingo como Dia do Senhor: Dies Domini, Dies dominica! Domingo não é dia de lazer, mas Dia do Senhor! Não foi sem motivos que São João Paulo II dedicou uma de suas cartas encíclicas à celebração do domingo.
O Ano Novo pode ser novo também em nosso relacionamento com Deus, com a comunidade religiosa que nos acolhe e, sobretudo, com nossos irmãos de fé.
Que 2021 sepulte o individualismo e a solidão de vida!
Escreveu o poeta romano Virgílio: – O tempo foge. Foge, irreparavelmente, o tempo. “Tempus fugit. Fugit irreparabile tempus”.
Chegue 2022 cheio de sentimentos de amor ao próximo e, mais ainda, abra um amplo espaço no tempo para nosso relacionamento com o Deus Amor, autor do tempo e da vida, que, por amor, nos deu a vida e o tempo para viver e para amar!
FELIZ E SANTO 2022 !
[1] Catecismo Católico, 1324, LG 11
[2] Catecismo Católico, 1324, PO 5
[3] Catecismo Católico, 1341
[4] Catecismo Católico, 1343
[5] Catecismo Católico, 1346, SC 56
[6] Catecismo Católico, 1346, DV 21