Dom João Justino de Medeiros Silva
Arcebispo de Montes Claros (MG)
Uma leitura atenta da realidade mundial revela sinais de um mundo resistente à fraternidade. Recentemente, o Papa Francisco reuniu, no primeiro capítulo da Encíclica Fratelli tutti, alguns desses sinais sob o título “As sombras de um mundo fechado”. Após um século de guerras e conflitos que ceifaram milhões de vidas humanas, esperava-se algum aprendizado. Mas parece que a humanidade não fez a lição de casa. Aqui e acolá reacendem-se situações de violência, atentados, perseguições em razão de raça ou de religião. Chega-se a falar de uma “terceira guerra mundial por pedaços” (cf. FT 25).
Vê-se que a economia se impõe cada vez mais sobre a política e o mercado, que não tem alma, é observado como se tivesse. Assim, fala-se de mercado nervoso ou calmo, por exemplo. Como consequência dessa inversão de valores, a pessoa humana é avaliada a partir de interesses econômicos. Com esse critério não é difícil descartar os pobres, os deficientes, os nascituros, os idosos, as populações tradicionais. É identificável como a dinâmica consumista de descartar objetos, porque já não servem mais, passa ao nível das relações humanas. O sentido da dignidade da pessoa esvazia-se acentuadamente. E, a mesma lógica do descarte favorece expressões de racismos que, como uma erva daninha, rompe aqui e ali.
É sabido que a Declaração Universal dos Direitos Humanos, de 1948, foi uma das primeiras e mais importantes ações da ONU. Caminho muito longo tem sido, desde então, para implementar a defesa dos direitos de modo universal, como se pretendia. É preciso reconhecer que “enquanto uma parte da humanidade vive na opulência, outra parte vê a própria dignidade não reconhecida, desprezada ou espezinhada e os seus direitos fundamentais ignorados ou violados” (FT 22). Nos últimos anos, encontram-se, até mesmo, narrativas contrárias aos direitos humanos. Tem havido muitos retrocessos na compreensão e defesa da democracia e do Estado Democrático de Direito. Ouvem-se vozes que pedem repressão. Com certeza não são sujeitos evangelizados pela boa nova da Páscoa. Certamente não leram o livro do Êxodo e rejeitam as bem-aventuranças anunciadas por Jesus.
Diversos países têm de lidar com o drama das migrações. Esse não é um fato deste tempo. Recorde-se de que o Brasil acolheu nos séculos passados fluxos migratórios de diversos países europeus. Não sem sofrimentos, os imigrantes ajudaram a construir este país. Centenas de milhares de brasileiros vivem noutros países. Para nós cristãos, deparar-se com um migrante – venezuelano ou haitiano, por exemplo – deve nos remeter imediatamente aos ensinamentos de Jesus: “Era estrangeiro e me acolhestes” (Mt 25,35). Talvez, “nunca se dirá que não sejam humanos, mas na prática, com as decisões e a maneira de os tratar, manifesta-se que são considerados menos valiosos, menos importantes, menos humanos. É inaceitável que os cristãos partilhem esta mentalidade e estas atitudes, fazendo às vezes prevalecer determinadas preferências políticas em vez das profundas convicções da sua própria fé: a dignidade inalienável de toda a pessoa humana, independentemente da sua origem, cor ou religião, e a lei suprema do amor fraterno” (FT 39). Em nenhuma hipótese deixemos criar em nosso coração obstáculos à fraternidade.