Essa pergunta pode ser formulada em diferentes ocasiões. Considero muito pertinente a sua apresentação, a cada um de nós, nesse cenário dramático pelo qual passamos, ao nos aproximarmos do número de 300 mil brasileiros mortos, vitimados pela COVID-19. E, obviamente, não há que se atentar somente para os números alarmantes. A vida, a história de cada pessoa falecida não pode ser reduzida a um dado estatístico. Não se pode descuidar, ainda, das relações inter-humanas que cada uma delas cultivou em vida, seus familiares e amigos. Elas amavam e eram amadas, nominalmente. E, independentemente de suas condutas em vida, deixaram alguém a sofrer pelas suas partidas. Se alguma morte nos encontrar insensíveis, acenda-se um alerta, pois podemos estar perdendo traços essenciais de humanidade.
De outro lado, temos os médicos, enfermeiros e demais profissionais que atuam nos hospitais, casas de saúde, UPAs, SAMU, e que têm se desdobrado para dar conta de um volume de demanda nunca antes vivido pela maioria deles em nosso país. Fala-se de exaustão do corpo clínico. Reconhecemos o grande desgaste emocional decorrente da atuação em UTIs lotadas e por um período tão extenso da pandemia. Pensemos que esses profissionais regressam às suas casas, todos os dias, tensos e preocupados se estão ou não levando para dentro de seus lares esse terrível vírus. Tratar dos pacientes com COVID-19 não se iguala a nenhum outro tratamento de doenças graves não contagiosas. Perder profissionais de saúde, sobretudo nesse momento, é profundamente desolador.
Desde o início da pandemia já me despedi, à distância, de muitos amigos – bispos, sacerdotes, diáconos, religiosos(as), leigos(as), pessoas de maior proximidade e outros menos conhecidos, mas também queridos. Já me deparei chorando ao receber avisos como esse: “Estou lhe telefonando para dizer que fulano faleceu. Não haverá velório, pois morreu de COVID”. Confesso que já sonhei, por mais de uma vez, que estive em contato com alguém que despois me comunicou estar infectado pelo coronavírus. Acordei sobressaltado e me dei conta da tensão a que estamos todos submetidos nesse tempo. Sim, o medo entrou em nossas casas. Infelizmente. Contudo, o medo é também mecanismo de defesa, e o que se observa atualmente é que onde ele não entra pode haver negação e descuidos, insensibilidades e corações de pedra, para utilizar um termo do vocabulário de Jesus: esclerocardia, coração endurecido (cf. Mc 10,5).
A capacidade de se colocar no lugar do outro encontra-se no evangelho de Jesus, como apelo aos que o querem seguir. De fato, ele nos exorta: “Tudo aquilo, portanto, que quereis que os outros vos façam, fazei-o vós a eles, pois esta é a Lei e os Profetas” (Mt 7,12); “Amarás o Senhor teu Deus de todo o teu coração, de toda a tua alma e de todo o teu entendimento. Esse é o maior e o primeiro mandamento. O segundo é semelhante a esse: Amarás o teu próximo como a ti mesmo” (Mt 22, 37-39); “Quem dentre vós estiver sem pecado, seja o primeiro a lhe atirar uma pedra” (Jo 8,7); “Ninguém tem maior amor do que aquele que dá a vida por seus amigos” (Jo 15,13).
Querer bem a cada pessoa significa, também, saber alegrar-se com ela nos momentos de suas alegrias e de solidarizar-se com ela em seus sofrimentos. O apóstolo Paulo exorta: “Alegrai-vos com os que se alegram, chorai com os que choram” (Rm 12,15). Portanto, é um traço importante da espiritualidade cristã saber colocar-se no lugar do outro. Eu acrescentaria: especialmente no momento da dor e da perda. E considero que aquele que perde a ternura, já não lhe resta muito do humano.
Dom João Justino de Medeiros Silva
Arcebispo Metropolitano de Montes Claros